Coisa que não edifica nem destrói

Um Podcast e Livro, de Ricardo Araújo Pereira

Crítica de Afonso Molinar, Diretor Artístico do teatroàfaca

Caras leitoras,

caros leitores,


            Gostaria de vos estar a escrever sobre um espectáculo ou um outro evento teatral a acontecer em Lisboa. Acontece que, entre trabalhos, me tem sido impossível ir ver teatro – é esta uma das ambiguidades do profissional de teatro: se está a trabalhar, não consegue ir ver quase nada; se não está a trabalhar, não tem dinheiro para ir ver quase nada.



Por isso, hoje discorro sobre um assunto que me diz muito, e que gostaria de deixar sugerido enquanto enciclopédia para um futuro mais positivo. Já desde os tempos antigos que vemos muita escrita teórica sobre coisas sérias, apontando desde logo como base a Poética de Aristóteles, onde este descreve pormenorizadamente aquilo que considera ser uma boa Tragédia. Esse é, pelo menos, o capítulo que nos chegou até hoje. Existem, no entanto, referências a um segundo capítulo, relativo à Comédia, ao qual nunca tivemos acesso. Ficciona Umberto Eco, no seu O nome da rosa, adaptado para cinema por Annaud, que a única cópia deste capítulo da obra de Aristóteles pudesse ter sido destruída num incêndio que se alastrou uma abadia italiana no Séc. XIV, mas a verdade é que provavelmente se perdeu muito antes. Porquê toda esta introdução, no entanto? Ora bem, porque a sugestão de hoje pretende, precisamente, pensar a comédia e o humor no seu contexto histórico e social, e enquanto fenómeno.

Recentemente editado também em livro, Coisa que não edifica nem destrói, um podcast de Ricardo Araújo Pereira onde este desenvolve temáticas associadas ao humor, por vezes de forma humorística mas, maioritariamente, e como o próprio descreve, «chatamente», tem sido das coisas mais deliciosas que me passaram pelas mãos nos últimos tempos.

Em primeiro lugar, porque nos dá acesso à obsessão de alguém que não tem a certeza do que está a falar, mas que pelo seu percurso e posição mediática parece ser a pessoa acertada para dirigir um podcast sobre o que o humor é e de onde vem; encontro algum regozijo nesta definição porque é verdadeiramente empolgante sentir que estamos a ter acesso às perguntas que R.A.P. se coloca diariamente, quase em formato de aula peripatética. Em segundo lugar, porque sou um entusiasta de comédia em todos os seus formatos, e creio que encontrar os padrões de palavras, gestos, tom de voz, ou expressão que fazem alguém rir – e mesmo a forma como este riso sai do corpo da pessoa em questão – diz tanto sobre a pessoa a quem nos estamos a dirigir.

Além de podermos ouvir R.A.P. durante cerca de 31a 67 minutos a questionar-se sobre cada um dos temas que traz para esse episódio – desde a etimologia da palavra humor às temáticas mais comuns das piadas que ouvimos e conhecemos –, é também impressionante a eficácia e perspicácia com que este passa a palavra a alguém que parece saber mais do que ele sobre aquele assunto em específico, e que vem esclarecer algumas das dúvidas colocadas anteriormente. Lá está, ouvir alguém a colocar questões que ficam no ar, como matéria para o pensamento e para o futuro, e que apesar de não edificarem ou destruírem, poderão contribuir para mais e melhor comédia no futuro – e penso que isso garanta um futuro significativamente melhor.

Os episódios estão todos disponíveis em plataformas de streaming, mas também no site do Expresso, onde podem ser ouvidos gratuitamente. O livro, que é no fundo uma mistura entre o texto de preparação para os episódios do podcast e a sua transcrição, também é recomendável, e está à venda em todo o lado - difícil seria evitá-lo.

 
Anterior
Anterior

Victor ou as crianças no poder

Próximo
Próximo

Afro Fado