Uma mensagem sobre Fim

A todas as pessoas que continuam desse lado, a ler-nos mensalmente:

Este mês gostaria de vos falar de Fim. Desafio-vos, desde já, a não ficarem tristes ou saudosistas só pelo surgimento da temática; afinal, o fim é necessário para que a memória individual, mas sobretudo a colectiva, possa fazer o seu trabalho.

Talvez queira falar de Fim porque este mês foi pautado por vários fins, ou pelo menos quase-fins. Depois de uma longa jornada de preparação da candidatura ao apoio sustentado da DGArtes – o que uma pessoa trabalha para que possa trabalhar – tenho tido muito mais tempo para ir ao teatro, pensar em teatro e, portanto, escrever e deixar que o meu pensamento se ocupe com teatro.

Assim, tenho para vós três coisas das quais gostaria de falar, e que marcam três fins muito diferentes. Coincidentemente, na minha experiência de cada um destes cai em três acontecimentos que marcaram dias consecutivos – 16, 17, e 18 de Julho, podendo talvez incluir também o dia 19 em que vos escrevo isto.

Fim 1 - Dia 16 – Artistas Unidos

Dia 16, os ArtistasUnidos despediram-se do Teatro da Politécnica, depois de 13 anos. Despediram-se, ou seja, foram despejados do espaço pela Universidade de Lisboa. Já não é a primeira vez que os AU se veem sem casa, e apesar de podermos esperar que seja a última, há um fim no horizonte, uma morte anunciada, se não conseguirem arranjar outra casa.

Apesar dos seus quase trinta anos de existência e trabalho, para mim os AU não existiam antes da Politécnica. Foi aí que os conheci, na sua primeira produção no espaço, Não se brinca com o amor, de Musset, era eu um recém-chegado à escola de teatro. Foi na Politécnica que aprendi a admirar o seu trabalho, que comprei os primeiros volumes dos Livrinhos de Teatro onde estão editados alguns dos textos que mais moldaram o criador teatral que sou hoje, que vi muitos amigos e colegas a começar os seus percursos para se tornarem alguns dos mais proeminentes intérpretes e criadores teatrais que hoje admiro. Não posso deixar de sentir que isto é muito sintomático do tempo que atravessamos. Mas temos de nos agarrar a uma qualquer esperança que as coisas vão melhorar, e que melhorarão se lutarmos por elas. Senão fosse por isso, de pouco serviria continuar a escrever-vos mensalmente. Como sempre, nestas situações, se os AU não conseguem ter um espaço de trabalho e apresentação, com que poderá contar uma pequena companhia que está agora a conseguir as suas primeiras coproduções? Há que manter a esperança e a luta.

E para isso, ainda que seja um fim triste, nós podemos ajudar. Está a circular uma petição, que aqui partilhamos, para que os AU sejam ouvidos em Assembleia Municipal e também em Assembleia Nacional, e que vos convidamos a assinar para que este assunto possa ser resolvido rapidamente e que os AU assumam a posição de segurança e estabilidade que merecem. O que está em causa vai para lá da existência dos AU: nestes tempos ultraneoliberais, a luta pela exigência de condições de trabalho dignas é horizontal a todas as estruturas artísticas, mas também a todos os trabalhadores e cidadãos.

Fim 2 - Dia 17 – Noite de Reis

Dia 17, vi a 101ª récita do espetáculo Noite de Reis, de Shakespeare, com encenação de Ricardo Neves-Neves. Com as últimas apresentações a acontecer até este Domingo, dia 21, este é o segundo fim anunciado que tenho para partilhar convosco. O espectáculo não foge à estética estabelecida por Neves-Neves no seu percurso, e os intérpretes, em geral, carregam de forma muito eficaz as diferentes cenas.

Algo que vi muitas vezes ser apontado negativamente a esta encenação foi a falta de seriedade com que se carrega, desde a banda sonora pop, à extrapolação de códigos queer, e por estar preenchido com buchas (vulgo: uma piada que não pertence ao texto dramatúrgico, que por norma procura sacar um riso fácil do público), tendo até ouvido que “aquilo não é Shakespeare”, porque este deve ser sério, e jamais um clássico tão clássico poderia ser tão buçal.

Defenderia, no entanto, que talvez este Shakespeare o seja muito mais que aqueles que se levam a sério. Se, por um lado, mantém a tradição isabelina drag de ser inteiramente representado por homens, inclui também em si um aspecto importante de ligação ao público que está presente em qualquer espectáculo que possa ser visto no Globe, ainda mais se for uma comédia.

Como ainda assumir que As you like it deveria ser traduzido para Como vos aprouver? Ou que Romeu e Mercúcio são apenas bons amigos que “têm boa carne para afogar o ganso”?, parafraseando a tradução de Villas-Boas. Outro bom exemplo de seriedade e sobriedade em Shakespeare talvez fosse David Tennant, numa produção de 2009 do Hamlet da Royal Shakespeare Company, que em resposta à negação de Ofélia de o deixar deitar-se no seu colo lhe responde «Do you think I mean cunt-ry matters» (Acto 3, Cena 2).

Aquilo que esta encenação nos apresenta é, simplesmente, uma actualização dos códigos que já lhe são inerentes, extremados pela concepção plástica que remete a linguagem de brincadeira, o que é muito prazeroso de assistir. Os actores em cena estão a brincar, riem-se uns dos outros, e destacam-se pela sua bonita ligação, que se faz notar. A música, maioritariamente Pop, coloca-nos também neste universo de não seriedade e invoca a brincadeira que lhe está inerente, ainda que por vezes pareça fora de sítio ou excessiva. Em geral, é uma muito bonita experiência e acho que Shakespeare gostaria de ver o que fizeram com os textos que lhe transcreveram.

Uma última nota sobre este espectáculo: é absolutamente deslumbrante ver qualquer espectáculo passar as 100 apresentações, sempre com salas bastante preenchidas. Devem ser parabenizados por o ter feito, e que sirva de exemplo às lógicas de programação de 2 dias.

Fim 3 - Dia 18 – Zénite

No dia 18, fui até à Bobadela, às margens do Rio Trancão, ver Zénite, de Sílvio Vieira. Tendo apenas visto registos de outros espectáculos da trilogia agora encerrada, não sabia muito bem o que esperar, mas a expectativa era mais alta do que gostava que tivesse sido. Mea culpa, mas as belíssimas fotografias que fui vendo ao longo dos anos seduziram-me a criar essa expectativa.

Duas notas prévias, relativas ao processo de criação deste espectáculo:

  1. Não tendo visto os espectáculos anteriores, sempre admirei muito os conceitos que estavam por trás e o pensamento que lhes era inerente, característica que reconheço e admiro no trabalho do Sílvio. Em geral, a criação desta trilogia tendo por base o local onde cada espectáculo é feito é, em si, um gesto que demonstra muita sensibilidade a aspectos fundamentais a ser pensados no contexto teatral actual, e vão ao encontro daquilo que dizia mais acima neste texto. O arrendamento da Garagem do Chile para Arena, durante uns meses, tem grande potencial enquanto gesto de revolta contra políticas de programação actuais. Neste caso, criar um Teatro a partir de entulho da mais solene casa de teatro do país é, por si, um gesto repleto de simbologia, sobretudo quando de seguida procura tocar em temáticas ligadas ao que é uma casa e a sua destruição.

  2. Reconheço que há uma enorme força por parte desta equipa em colocar algo como Zénite de pé. Só posso imaginar o que terá sido o cansaço físico, emocional e psicológico para erguer e criar condições logísticas para que acontecesse, tanto da parte artística como de produção. Além disso, o ambiente era de grande cuidado para que o público não sentisse esse mesmo esforço que ao espectáculo era inerente. Só por tudo isso, já as equipas em todas as frentes do projecto estariam de parabéns.

Devo agora falar, então, um pouco de tudo o que me obrigou a pensar a minha própria expectativa. O espectáculo arranca no topo de uma colina onde, ao pôr do Sol, somos confrontados com música e texto que entorpecem a brilhante imagem que temos pela frente: um conjunto de pessoas a descer um rio, ao longe, com uma lanterna, para ir buscar um enorme pano encarnado que rasga a paisagem, seguindo-se depois três momentos em locais diferentes e em que, como de início, nos colocam perante imagens deslumbrantes.E o espectáculo é todo vivido nessa mesma lógica, como uma visita a uma galeria repleta de obras de Friedrich e Richter: uma paisagem que se move com o público, mas que depois permanece na galeria que é a margem do Rio Trancão.

A gestão da minha expectativa entra na procura demais elementos que complementem as imagens que já estavam nas fotografias promocionais; a fotografia tem o poder de capturar o melhor de cada imagem, do melhor ângulo, com a objectiva e a luz certas – algo que o Filipe Ferreira faz admiravelmente, e objecto ao qual sou particularmente sensível. Pois quando essas imagens nos são colocadas em frente, ao vivo, num local que implica ao público alguma deslocação até à Bobadela, esforço físico, tempo, arriscando ser picado pelos milhares de mosquitos que habitam aquele terreno pantanoso, é inevitável procurar aquilo que está para além das mesmas. E sinto que esse algo nunca chegou. Tive acesso a mais imagens, à experiência daquele que as tirou, e a poder assistir à criação e modulação dessas imagens em frente dos meus olhos, e isso tem um enorme valor, mas senti que o que circundava esse ambiente, sobretudo a matéria textual, não estava no mesmo nível. Foi, no entanto, uma experiência muito bonita, com interpretações fortíssimas (continuo a ser derreado pela Rita Cabaço de cada vez que a vejo), e um enorme gesto da parte de toda a equipa criativa.

O espectáculo também só está até Domingo, dia 21, e está esgotado, mas se aparecerem pode ser que consigam um bilhete de alguém que não apareceu. Também o espectáculo terá o seu fim, e não dá sinais de vir a ser reposto.

Fim 4 - Dia 19 – Escrever isto

Ao escrever isto, estou também a contemplar o fim desta temporada. Pensar nestes três fins, de coisas com durações bastante diferentes, leva-me a pensar no que ficou para trás esta temporada e no que está por vir na próxima. Gostaria de vos escrever novamente em Agosto, para pensar naquilo que vem a seguir, e para isso deveria também dar um fim àquilo que é esta temporada e o que são estas partilhas que aqui faço. Escrever-vos-ei em Agosto, mas não vos peço mais tempo para a leitura deste texto.

Agradeço-vos, uma vez mais, que estejam desse lado e pelas respostas que por vezes recebemos. É bom sentir que está alguém num outro ecrã com quem podemos partilhar pensamento.

Até breve, e boas férias!

Anterior
Anterior

Uma carta sobre o conceito de férias em Teatro

Próximo
Próximo

A Torre das Amoreiras